Quem sou

Quem sou
Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

FINALMENTE CIDADÃO OU, TALVEZ, NÃO

        Como toda a gente, comecei a existência disposto no meio dum mundo onde o sistema de identificação foi, quase inexoravelmente sempre, um número. E até levanto as mãos, em agradecimento à pobreza familiar que me facilitou nascer na enxerga caseira e, portanto, isso não ter acontecido num quarto aquecido e bem apetrechado, em alguma maternidade, onde me seria, de imediato, aplicada uma fitinha azul, porque menino, na minha delicada perninha, com perigo de comichão incomodativa, trazendo apenso um número a indicar e anunciar quem eu era.
          Como as coisas se passavam de um modo distinto em relação ao que sucede nestes nossos tempos!
          Quando cresci, entrei para a Escola, na qual mal me aguentaram, pois três dias volvidos, após o início dos primeiros traços de giz no quadro e riscos gravados na ardósia ou lousa, como lhe chamávamos com ternura e elevação, “expulsaram-me” porque o meu número era inconveniente, perante a quantidade de meninos e meninas que também auferiam o direito de aprender e pertenciam aos números primeiros pela idade. Dois dias, apenas, foram suficientes para a inesperada recusa.
          Mas, vencidas as dificuldades iniciais, incompreensíveis para a minha mentalidade inculta e ainda não desbravada, acomodaram-me, numa cadeira levada de casa, e por favor, como um número mais, naquele compartimento doméstico adaptado para sala de aula.
          Mais tarde, também, a respectiva roupa pessoal tinha marcado não o nome, mas um número que me atribuía o direito de propriedade.
          Com o desenrolar dos anos, depreendi que não haveria meio diferente de ser distinguido no meio de muitos outros indivíduos, em todo o sítio e ocupação, senão por um número.
          Até me lembro ter galhofado naquela tarde em que “assentei praça” num quartel, aí mesmo passando, transcorridas duas escassas horas de serviço exemplar, à reserva das tropas territoriais e com caderneta militar na qual eu era apontado como um número.
          Depois vieram os cartões para todas as espécies, feitios e finalidades.  
        Evidentemente que alguns eram e são necessários; outros, nem por isso simplificativos, e até, complicativos ou escusados, consoante o prisma e a oportunidade de necessidade por que sejam entendidos e aceites.                                                                                                          
          Ainda conservo como relíquia a minha Carta de Condução de bicicleta. O mesmo que sobre a “motoreta” e automóvel. Tudo marcado com o ferrete dum número.
     Quando as autoridades me interceptam é ele que baila.
     Ah! Já me esquecia de dizer que me concederam, vão lá uns anitos, o meu Bilhete de Identidade, o de Contribuinte, o de Sanidade e Utente, e nem me lembro quantos mais.
     Tenho muita dificuldade em decorar o meu número em todos eles. Por essa razão, tenho de remexer os meus bolsos na procura dos meus números para descortinar quem sou.
     Melhor: tenho, não; tinha, porque, então, me trocaram tudo por um Cartão único. A partir de gora sim, sou o que este tal afirma que sou: CIDADÃO.
     Finalmente, CIDADÃO.
     Penaliza-me, porém que o dito cartãozinho não me deixe levantar umas economias em qualquer Caixa, onde não possuo o substrato que me confira o crédito para tal. Mas, pelo menos, alegro-me porque as entidades oficiais começaram a perceber que eu não sou mais um número anónimo no meio de uma sociedade indisciplinada e desorganizada, mas um cidadão, uma pessoa dotada de direitos e deveres e com um nome que me distingue concretamente de todos os outros. Individualiza-me.
     P.S. Afinal, tenho de regressar, por causas alheias à minha vontade, àquele meu sentimento abúlico da decepção. É que, tendo-me sido posto na mão o brinquedo chamado CARTÃO DO CIDADÃO, reparo que, em e por tudo, mo voltam a tirar, pois me perguntaram o meu número de eleitor para catarem a minha pessoa, que deveria ser conhecida pela singularidade de um nome próprio e individual mas, todavia, não é.
     Ora bolas para o caso! 
    
                                                                                Manuel Armando


DEUS E O SEU REINO

Diante de nós, dois senhores:
Um, tirano, prepotente e escravizador;
O outro, na intimidade e no amor,
A emprestar-nos seus augustos favores
De nos libertar da ambição e cobiça
E revestir-nos com as armas da justiça.
Um a prometer a satisfação ao mundo inteiro
Porque só ele comanda o humano interesseiro;
O outro a propôr uma diferente felicidade,
Construída na paz e fraternidade.

Preocupado com o interesse das coisas banais,
Corre o indivíduo, por esse mundo além,
Em fúria, sem atender aos valores principais
Da vida, construída na simplicidade também.
Como louco, busca o seu bem-estar terreno
E deixa de lado o descanso, louvor e oração,
Não escuta o convite de tornar-se pequeno
Para, na humildade, encontrar a Salvação.

Ao filho desprendido e vigilante
Dá o Pai sempre o pão em abundância,
Mas ao inútil, ocioso e arrogante
Pune, com severidade e rectidão, sua ganância.

Só Deus nos pode e vai julgar
Pelo que fazemos dos bens a nós confiados,
No tempo e espaço que nos quis dar
E onde o trabalho, aceite, redime nossos pecados.

É-nos proposto o voluntário desprendimento
Dos haveres terrenos e passageiros:
O que iremos vestir ou tomar como alimento,
Pois o Pai Celeste cuidará de nós,
E aqueles que escutarem sua voz,
No reino da felicidade, serão os primeiros.

Crescem os lírios do campo, em liberdade,
Voam as aves, pelos céus, com desenvoltura;
Deus fá-los crescer com a infinita bondade
Pois, Ele Criador, ama a sua criatura.

Anda o homem, pressuroso, em constante correria
Na busca do alimento que passa,
Da riqueza que cega e torna sua alegria
Falsa, oca, passageira e sem graça.

Ninguém pode servir, no mesmo momento,
A dois senhores que estão diante de nós.
Deus dá-nos Sua Vida, Amor e sustento,
O dinheiro escraviza porque é feroz.

Aqui, reconheço a minha dúvida e fraqueza,
Mas, no Espírito de Deus, encontrarei a certeza.

Que eu Te sirva, então, Senhor, com a verdade,
E à riqueza não me sujeite inutilmente.
Ponho nas Tuas mãos a minha fragilidade,
Pois sei que me olhas e amas docemente.

Manuel Armando
(Reflexão para o 8º Domingo do Tempo Comum, Ano A)

SOMOS TESTEMUNHAS DO AMOR

          “Olho por olho, dente por dente”;
              É ordem injusta, pesada e desumana
              Mas, quem isso esquece não é de boa gente,
              Como atesta o insensato no ódio que sente
              Porque a ninguém ama e a si mesmo se engana.

              Num mundo de egoísmo e traição,
              Onde não se dá lugar ao direito e à fraternidade,
              O homem avilta-se e, cego na sua paixão,
              Espezinha seu semelhante com severa crueldade.
               
              Alguém, despojado de saúde, agasalho e pão,
              Carrega nos seus ombros o peso da dor,
              Chora o abandono e o ónus da solidão
              De uma pobre vida, sem luz nem calor.

              Quão difícil e penoso é, assim, calar a injustiça
              De quem todos os bens quer abraçar,
              À custa do sustento alheio que, na liça,
              O pobre obtém no seu muito trabalhar.

              Como é custoso ter de perdoar
              Ou pelos perseguidores rezar.
              E, ainda, se isso nos trouxesse a certeza
              De agirmos com inteira firmeza,
              Então, Senhor, iríamos sempre cantar
              Tua graça encorajante, Teu amor;
              E a verdade do nosso valor
              Seria fazer o bem sem nada, em troca, esperar.

              Em cada irmão veja eu o Teu rosto,
              Na chamada à grandeza da perfeição;
              Eternamente grato por teres posto
              Diante de mim e de todos o perdão,
              Pelo qual chegamos a Deus Pai
              Com o grande amor que, do coração, nos sai
              E nos haverá de levar à Salvação.
            
              Por isso continua, Senhor, a ensinar cada um de nós
              A ouvir, tranquilos e felizes, Tua voz.

              Confiamos nos dons da Tua bondade;
              Queremos experimentar, no nosso dia a dia,
              O desprendimento e a humildade,
              Nossa entrega e disponibilidade.
              Porque somos Templos do Espírito da paz e alegria.

                          
                                                                                      Manuel Armando
              
            (Reflexão para o 7º Domingo do Tempo Comum, Ano – A)

A LEI É AMAR

              Gravada no íntimo de todos nós,
              A lei que nos rege e orienta
              É a verdade segura, pois assenta
              Na força da Natureza a fazer ouvir sua voz.

              Não foi o homem seu criador,
              Mas aprendeu pelas escrituras
              Que, sem má vontade, desprezo ou rancor,
              Ela une, entre si, as criaturas.

              Liberta, suaviza, opõe-se à crueldade
              Dos seres propensos à rebeldia,
              Equilibra o viver em comunidade,
              Ela é o ânimo e sustento de fidelidade
              Do Criado ao Criador, em cada dia.

              Num caminho certo da Salvação,
              Deus dotou o mundo de liberdade
              Para alcançar, por sua própria mão,
              Os frutos de amor, grandeza e felicidade.

              Transgrediu o homem esta benesse
              Dada sem reservas nem distinção.
              O pecado avilta-o mas ele reconhece
              Que, na luta do trabalho e dor, ganhará seu pão.

              Vem o Senhor Jesus com autoridade divina
              Dizer que nada, nem um til, à Lei irá mudar
              Mas quer dar-lhe nova força que ilumina
              Aqueles que a vida e coração tentam transformar.
              Assim, o mandamento recebe renovado vigor
              Porque assente e garantido pelo amor.

              Por ele, abrem-se outros caminhos e horizontes,
              Alegrias e certezas jorram das fontes
              Da Graça Redentora que Deus nos dá
              Com Sua Palavra, nosso Pão, nosso Maná.

              Pelo amor não chamarei louco a meu irmão;
              Contra ele tentarei não lançar minha má vontade;
              Vou reconciliar-me com sincera caridade
              E, juntos, no altar comeremos do mesmo pão,
              Pois não é meu adversário nem inimigo,
              Mas companheiro na difícil e longa jornada.
              
              Eu com ele e ele comigo,
              Chegaremos à Sabedoria da fraternal caminhada.

              Já desejei inutilmente o bem alheio
              Do meu semelhante a quem prometera ajuda e abraços,
              Quando, afinal, me presumi cheio
              De riqueza e segurança nos meus passos,
              E lhe virei a cara em desprezo e desdém
              Porque me pensava sábio e capaz, como ninguém.

              Não juro falso mas, já com leviandade, jurei
              Cumprir o conselho certo do meu Senhor;
              Confesso, agora, e compreendo onde errei:
              Quando a vaidade substituiu o amor.
              Não quis reconhecer a inutilidade
              Do meu eu egoísta sem rumo nem direcção,
              Orgulhoso pelo falso poderio
              Da minha existência em rodopio
              Desprovida de sentido, motivo ou fidelidade
              À chamada da consciente e profética missão,
              Pois devendo afirmar o meu sim,
              Gritei, bem alto, um ingrato não.
              Foi a apatia sonolenta a tomar conta de mim
              Porque meus gestos não fizeram comunhão.

              Imprime, Senhor, no meu inseguro coração
              Tua Lei divina, para a cumprir até ao fim.
              Aos convites e atractivos ocos do mundo eu diga NÃO;
              E à graça da Tua vontade, o meu sempre renovado SIM.

                                                                        Manuel Armando

                        (Reflexão para o 6º Domingo do Tempo Comum – Ano A)
             

domingo, 20 de fevereiro de 2011

EXPERIMENTAR PARA JULGAR



          Entendemos que, para nos aquilatarmos de certezas e darmos importância a determinadas coisas e circunstâncias, deveríamos, de certo modo, experimentá-las ao vivo ou em nós mesmos.
          Aquilo sobre que ouvimos falar, nem sempre corresponderá à inteira verdade, até porque, como diz a filosofia popular, “quem conta um conto aumenta-lhe um ponto”.
          Recordo-me que, enquanto miúdo, eu dizia não gostar disto ou daquilo e, portanto, não comeria, ao que os meus progenitores contrapunham com a ordem intransigente de experimentação das iguarias. Só, após essa degustação, ser-me-iam levantadas quaisquer reticências que permitiam a liberdade da recusa.
          No crescimento da nossa pessoa humana com uma consciencialização adulta do que somos, pensamos e fazemos, vamos progressivamente adquirindo o entendimento da vida e seus problemas correspondentes.
          A actuação, nossa e dos outros, forma-nos uma personalidade, acrescentando, em concreta caminhada, o conhecimento da socialização e autenticidade deste povo global, onde cada qual tem a atinente quota-parte responsável na sua construção equilibrada e justa.
          É certo que, não sendo eclécticos em todas as ciências e técnicas, e nem com a presunção disso mesmo, ficaremos muito aquém, em consciência e dever, da resolução dos misteriosos contratempos, nesta sociedade humana.
          Jamais descobriremos a capacidade para lutar contra a fome se o nosso estômago esteve sempre mais ou menos saciado. Não imaginamos, de certeza, o que significa viver-se sem uma habitação ou desnudados se o frio foi passando ao lado das nossas lareiras ou aquecimentos eléctricos.
         Porque, felizmente, temos ainda o aconchego da família e a abertura dos nossos vizinhos, também não aceitamos os desacatos, violências e vícios adquiridos dos indivíduos que se vão organizando em grupos pouco recomendáveis e, quiçá, perigosos e aterradores.
          Avaliar e julgar, ou ainda lastimar com leveza de espírito, tornar-se-á o mais linear e fácil mas não fará grande razão. Achamos que as associações ou instituições oficiais deverão ser os donos dos esquemas para obviar todas as dificuldades criadas pela sociedade global ou, particularmente, fundamentadas na inactividade de cada um de nós.
          Há pouco tempo atrás, experimentei o desencanto, para não dizer a náusea, de uma situação caricata em que me encontrei envolvido sem culpa nem vontade.
          Aproveitei, numa das minhas deslocações artísticas, a desvantagem da idade para o benefício da redução no preço do transporte.
          Momentos atribulados, acredite-se. O regresso não coincidiu com horários adequados e rápidos. Ainda achei uma sala de espera, não muito cómoda, mas tolerável, onde me enfiei. Estava só e, às duas horas da manhã em ponto, alguém, com sua autoridade fardada, me veio dar “ordem de despejo”. A minha pergunta perplexa sobre a razão para tal procedimento não valeu nenhuma resposta.
          Daí, o ter passado a noite inteira no desconforto de uma estação ferroviária, à chuva e ao vento frio que gelou o casaco e os ossos.
          Procurei, então, qualquer outro sítio que fosse minimamente conveniente. Desci até ao rés-do-chão. Lá encontrei uma pequena multidão com mulheres e homens, uns deitados, outros sentados ou deambulando para a frente e para trás. Peguei no livro das palavras cruzadas, disposto a misturar-me com aqueles que supus esperarem, também eles, o comboio das sete da manhã.
          Equivoquei-me e, dando por isso, bem depressa percebi o motivo para a “ordem de expulsão” da tal sala de espera. É que todas aquelas pessoas eram os chamados e reais “sem-abrigo”.
         Alguém da Segurança, numa amena cavaqueira, explicou-me parte de todo aquele angustiante drama que se deparava diante dos meus olhos.
          “Auscultei” alguns problemas. Pensei nesta sociedade que somos a vegetar na insensibilidade, na incapacidade de resolução, na praga de parasitismo que se vislumbra, em alguma caridade(zinha) feita, e noutros variadíssimos assuntos e dificuldades.
          Na conclusão de tudo isto, ficou-me um amargo no estômago.
          É que a mim, com aquela certeza segura que eu tenho de ser uma pessoa normal no modo de viver comum, também me puseram fora de uma sala de espera.
         A sociedade fez de mim um “sem-abrigo”.
          Para quê tentar construir ilações sobre tudo quanto se observa mas queremos esquecer, de imediato?
          Todavia, confesso ter-me doído a alma com esta boa experiência, numa terrível noite de inverno a regelar comportamentos e consciências.

                                                                                Manuel Armando