Encherá sempre a memória
E, mais ainda, nosso frágil coração
Aquela grave e sublime história
Que, não sendo banal e doce fantasia,
Duma novidade vazia,
Trouxe ao mundo a harmonia,
Satisfez a esperança da razão
De aguardar o dia
Quando, para todos, viria
A plenitude da Salvação.
Era uma vez um Menino lindo
Que, no Seu amor infindo,
Desejava nascer
Para experimentar sofrer
A vida dos humanos,
Admitindo, já nos eternos planos,
Por eles morrer.
Bateu, com suavidade em cada porta,
Provocando muita curiosidade.
Descobriu que, na humanidade,
O sentido da caridade
Era letra morta,
Inscrita em corações rasos de crueldade.
Galgou os átrios de político falante
A quem perguntou, com voz sossegada:
- “Posso encontrar em ti minha pousada?
Preciso nascer neste instante
E dar aos homens a certeza
De que, mesmo na pobreza,
Encontrarão liberdade,
Pois só em fraternidade,
Ou repartindo seu pão com amor,
Encontrarão o Senhor”.
Logo ouviu como reposta:
- Não é disso que a gente gosta;
Sabes falar às turbas da sociedade
Dizendo a mentira com roupagem de verdade?
De contrário, podes continuar teu caminho
Pois, aqui e assim, não farás teu ninho”.
Abeirou-se do militar e, com desvelo,
Elogiou-lhe o prestimoso zelo
E, sem passar da entrada,
Ouviu, quase de rajada,
Num grito de espantar:
- “Trazes armas para matar?
Se não, podes perceber
Que, nesta guerra, não vais tu nascer”.
Chegou à câmara do intelectual
Que o olhou de soslaio
E avisou: “Inquietas-me, mas para teu mal,
Nessa não caio.
Não me vais agora incomodar
Porque não sabes pensar.
Procura outra guarida;
Comigo não ganharás nenhuma vida
E esta é uma tua hora perdida”.
Foi, então, até ao empresário
Que, sem nada querer ouvir,
Desfiou o enorme rosário
De suas lides em cada dia
E berrou, com insolente energia:
- “Tens dinheiro para investir”?
Como sua bolsa estava vazia
Pois, apenas, nela trazia
Uma grande e forte esperança,
Correu, ágil, ao homem da finança
Que, rudemente, lhe fechou as portas.
Naquelas horas mortas,
Encontrou um lunático cientista,
De ar orgulhoso e futurista,
A perguntar-lhe, com sarcasmo profundo:
- “Sabes fazer experiências
Ou conheces as ciências
Da origem do Homem e do mundo”?
Lívido, mudo e quedo Aquele Menino,
Perante tanta arrogância e frieza,
De olhar inerte e tristonho,
Contemplou a Sua Natureza
E, ouvindo o tumulto medonho
Dos homens soberbos e orgulhosos,
Reparou quanto eram penosos
Os trabalhos do cavador
Que, em braçadas de dor,
Buscava, com afã, o seu pão.
Resolveu dar-lhe a mão.
-“Vem, disse-lhe, então, o pobre, afogueado;
Vem e partilho contigo a courela
Deste campo que amanho;
Lavas-me do meu pecado,
Na tua espiritual barrela,
E ficamos os dois de ganho”.
Eis, se não quando, chega um sem-abrigo
E o convida com a emoção que a ninguém engana:
- “Entra e, porque és meu amigo,
Nascerás na minha cabana”.
Também nisto as crianças não são indiferentes,
Estão em todas as frentes.
Por isso, com semblante gaiato e feliz,
Corre àquele encontro, um petiz
E, na maior naturalidade,
Descobrindo toda a verdade,
Diz:
- “Eu não sei ler
Nem, tão-pouco, escrever
Mas contigo quero aprender.
Aguentas, nas costas, a sacola?
Portas-te bem na Escola?
Vais comigo brincar, correr,
Jogar à bola”?
E o Jesus, sem Se dar a conhecer,
Começou por dizer:
- “Eu, ainda, não sou nascido
Mas, tendo-te conhecido,
Em ti vou nascer.
Faremos boa companhia;
Minha Mãe chama-se Maria.
E, como também és pequenino,
Tudo faremos em parceria;
Seremos bons para os demais
Como nos ensinam nossos pais”.
O Deus-Menino, que quase perdia a esperança,
Fez amizade com aquela criança;
Apontou-lhe caminhos de liberdade
Na busca da felicidade,
E ela mesma haveria de entender a lei do amor
Para tornar o mundo, caído e sofredor,
Num oásis de vida melhor.
Na verdade, Ele veio para os seus
E estes não O receberam;
Recusaram a felicidade dos Céus
Porque, jamais, entenderam
Os desígnios de Deus.
Mas quem abriu, de par em par, sua morada
E O acolheu com humildade de coração,
Há-de tomar parte na mesa recheada,
Do banquete da Salvação.
(Festa de Natal, Ano B – Jo.1,1-18)