Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

VEIO PARA O QUE ERA SEU

          Encherá sempre a memória
              E, mais ainda, nosso frágil coração
              Aquela grave e sublime história
              Que, não sendo banal e doce fantasia,
              Duma novidade vazia,
              Trouxe ao mundo a harmonia,
              Satisfez a esperança da razão
              De aguardar o dia
              Quando, para todos, viria
              A plenitude da Salvação.

              Era uma vez um Menino lindo
              Que, no Seu amor infindo,
              Desejava nascer 
              Para experimentar sofrer
              A vida dos humanos,
              Admitindo, já nos eternos planos,
              Por eles morrer.

              Bateu, com suavidade em cada porta,
              Provocando muita curiosidade.
              Descobriu que, na humanidade,
              O sentido da caridade
              Era letra morta,
              Inscrita em corações rasos de crueldade.

              Galgou os átrios de político falante
              A quem perguntou, com voz sossegada:
              - “Posso encontrar em ti minha pousada?
              Preciso nascer neste instante
              E dar aos homens a certeza
              De que, mesmo na pobreza,
              Encontrarão liberdade,
              Pois só em fraternidade,
              Ou repartindo seu pão com amor,
              Encontrarão o Senhor”.
              Logo ouviu como reposta:
              - Não é disso que a gente gosta;
              Sabes falar às turbas da sociedade
              Dizendo a mentira com roupagem de verdade?
              De contrário, podes continuar teu caminho
              Pois, aqui e assim, não farás teu ninho”.

              Abeirou-se do militar e, com desvelo,
              Elogiou-lhe o prestimoso zelo
              E, sem passar da entrada,
              Ouviu, quase de rajada,
              Num grito de espantar:
              - “Trazes armas para matar?
              Se não, podes perceber
              Que, nesta guerra, não vais tu nascer”.

              Chegou à câmara do intelectual
              Que o olhou de soslaio
              E avisou: “Inquietas-me, mas para teu mal,
              Nessa não caio.
              Não me vais agora incomodar
              Porque não sabes pensar.
              Procura outra guarida;
              Comigo não ganharás nenhuma vida
              E esta é uma tua hora perdida”.

              Foi, então, até ao empresário
              Que, sem nada querer ouvir,
              Desfiou o enorme rosário
              De suas lides em cada dia
              E berrou, com insolente energia:
              - “Tens dinheiro para investir”?

              Como sua bolsa estava vazia
              Pois, apenas, nela trazia
              Uma grande e forte esperança,
              Correu, ágil, ao homem da finança
              Que, rudemente, lhe fechou as portas.
              Naquelas horas mortas,
              Encontrou um lunático cientista,
              De ar orgulhoso e futurista,
              A perguntar-lhe, com sarcasmo profundo:
              - “Sabes fazer experiências
              Ou conheces as ciências
              Da origem do Homem e do mundo”?

              Lívido, mudo e quedo Aquele Menino,
              Perante tanta arrogância e frieza,
              De olhar inerte e tristonho,
              Contemplou a Sua Natureza
              E, ouvindo o tumulto medonho
              Dos homens soberbos e orgulhosos,
              Reparou quanto eram penosos
              Os trabalhos do cavador
              Que, em braçadas de dor,
              Buscava, com afã, o seu pão.
              Resolveu dar-lhe a mão.
              -“Vem, disse-lhe, então, o pobre, afogueado;
              Vem e partilho contigo a courela
              Deste campo que amanho;
              Lavas-me do meu pecado,
              Na tua espiritual barrela,
              E ficamos os dois de ganho”.

              Eis, se não quando, chega um sem-abrigo
              E o convida com a emoção que a ninguém engana:
              - “Entra e, porque és meu amigo,
              Nascerás na minha cabana”.

              Também nisto as crianças não são indiferentes,
              Estão em todas as frentes.
              Por isso, com semblante gaiato e feliz,
              Corre àquele encontro, um petiz
              E, na maior naturalidade,
              Descobrindo toda a verdade,
              Diz:
              - “Eu não sei ler
              Nem, tão-pouco, escrever
              Mas contigo quero aprender.
              Aguentas, nas costas, a sacola?
              Portas-te bem na Escola?
              Vais comigo brincar, correr,
              Jogar à bola”?

              E o Jesus, sem Se dar a conhecer,
              Começou por dizer:
              - “Eu, ainda, não sou nascido
              Mas, tendo-te conhecido,
              Em ti vou nascer.
              Faremos boa companhia;
              Minha Mãe chama-se Maria.
              E, como também és pequenino,
              Tudo faremos em parceria;
              Seremos bons para os demais
              Como nos ensinam nossos pais”.

              O Deus-Menino, que quase perdia a esperança,
              Fez amizade com aquela criança;
              Apontou-lhe caminhos de liberdade
              Na busca da felicidade,
              E ela mesma haveria de entender a lei do amor
              Para tornar o mundo, caído e sofredor,
              Num oásis de vida melhor.

              Na verdade, Ele veio para os seus
              E estes não O receberam;
              Recusaram a felicidade dos Céus
              Porque, jamais, entenderam
              Os desígnios de Deus.

              Mas quem abriu, de par em par, sua morada
              E O acolheu com humildade de coração,
              Há-de tomar parte na mesa recheada,
              Do banquete da Salvação.


                               (Festa de Natal, Ano B – Jo.1,1-18)
  

O MEU SONHO DE NATAL

    Quem nunca imaginou coisas, umas simples, outras mirabolantes como, por exemplo, ter autoridade fora do comum ou estar em qualquer missão de destaque e capaz de virar o mundo de cangalhas? É que, por enquanto, ainda vamos usufruindo o direito de sermos livres para pensar em tudo, quando estamos bem acordados.
    E, se o mesmo acontece durante o sono, é bom experimentar acordar com os laivos da esperança de tudo, num futuro próximo, vir a desenrolar-se tão bem como o vivido no filme do nosso subconsciente, em rédea solta e despreocupado. Quando assim é, um sabor a mel inebria, por vezes, as nossas papilas gustativas que desenvolvem uma torrente de água doce na nossa boca já de si azeda.
    O amargo total chega depois ao verificarmos, na desilusão, que tudo não passou de uma brincadeira onírica inconsciente sem saída plausível.
    Sonhos são, na verdade, sonhos ou realidades irreais. Mas comandam a vida, incontestavelmente.
    Pois eu sonhei e um sorriso irreverente assomou, logo, aos meus lábios porque se me anunciava o alvorecer de novo dia.
    Só eu o saboreei. Todavia, não quero admitir que o caso fique embrulhado, como prenda unicamente minha e, por isso, vou desfazer o lacinho e abri-lo para também muitas outras pessoas sorrirem escancaradamente e sem vergonha.
    Sonhei que decorria nas ruas da cidade uma enorme manifestação social, política ou religiosa, não descortinei bem. O povo simples, o verdadeiramente trabalhador e funcionário público dos campos ou das oficinas, por direito próprio e democraticamente elegido, ocupava os “passos encontrados” das salas do poder constituído. Vergados ao peso dos anos de fome, cansaços e privações, cheirando a bafio e suor, os homens e mulheres continuavam os seus dias, num misto de certezas e desencantos, trabalhando para o bem comum, sem manifestar qualquer prova de enfado.
   Lá fora, milhares de altos funcionários com patentes de Estado ou a ele ligados, em longas e intermináveis filas, eram os manifestantes dessa altura e a eles se juntavam faces ocultas e muitos, muitos senhores de comendas e mordomados sem conhecimento prévio e pessoal, banqueiros e presidentes de administração disto e daquilo a gritarem a sua vergonha por gozarem os gordíssimos ordenados, reformas e outras tantas benesses (passeadas em duplicado, triplicado ou mais…).
    Estes, levantando bem alto os cartazes uniformemente elaborados, afirmavam, com inaudita humildade e altruísmo, que, se o povo (aquele povo honesto e probo que estava no poder) lhes permitisse, iriam prescindir de todas as regalias que lhes eram impostas e justificadas por leis previamente elaboradas para seu proveito, em ordem a resolver e vencer a onerosa crise onde metade do país está sepultada.
    Achei que significava uma medida salvadora capaz e oportuna. Também eu me debruçava na janela do complexo governativo e, não só aceitei, como ainda incentivei todo o povo anónimo, pretenso governante, a acolher e abraçar o protesto dos endinheirados.
    Contudo…, agora, eu acordo para a realidade.
    Isto não passou de mera e mesquinha fantasia.
    Sonhei ser uma prendinha a cair pela chaminé nas tairocas de quantos pelejam e caminham em busca de uma vida mais feliz e justa. Ficção pura porque, enquanto enxamearem os abutres gananciosos, isso não deve acontecer.
    Mas, ainda assim, atrevo-me a formular para todos o desejo de um bom Natal, porque o novo ano se avizinha carregado de sombras.



                                                                                     Manuel Armando