Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

quinta-feira, 4 de outubro de 2012


    A ALEGRIA DE SER POBRE
     Nunca entendi, ou não quis entender, a expressão bem portuguesa e popular, creio, do “pobrete, mas alegrete”. Talvez isso não produza na minha pessoa grande mossa, em virtude do berço em que me deitaram, acabara eu de nascer, ser uma caixa onde haviam jazido sardinhas para venda, embora suas tábuas depois fossem aplainadas e marteladas pelo artífice sem diploma nem arte, mas credenciado pelo carinho e amor cuidado de pai.
     Não cresci entre sedas e brocados nem fui sentado em mesa onde luzissem os talheres de prata ou dourados.
     Entrei numa Escola Primária, por caridade e favor, depois de ser “expulso” da primeira, que frequentei só durante dois dias, porque a sala de aulas estava carregada de modo a não comportar tão grande número de alunos, abrangidos nas quatro classes de então.
     Não estou, nem quero, a lamentar-me de alguma coisa. Muito pelo contrário. Dá-me uma enorme satisfação trazer à memória restos de vida por que passávamos sem garantias nem subsídios.
     Os tempos eram outros e tudo servia para estabelecer normas de vida e linhas divisórias entre os bafejados da sorte e a arraia-miúda da sociedade.
     Mas ultrapassávamos, com natural espontaneidade, a situação. Também é certo que a nossa cabecita não concebia a dimensão dessa desgraça tamanha.
     Faço regressar à recordação um episódio de dois miúdos a frequentarem a mesma sala de aulas, quando nela se fazia o favor de distribuir pequenos e frugais lanches às crianças que pareciam trazer mais carências estampadas na cara.
     Numa ocasião e, enquanto lhes foi perguntado algo sobre as suas famílias e pormenores sociais respectivos, um enumerou a existência de seis irmãos e o outro relatou não ter pai porque este havia abandonado a casa, mulher e filhos. A ambos os rapazitos entregaram um lanche porque eles mesmos tinham adquirido tal direito, reconhecido pelo estatuto de serem pobres.
      Todavia um deles não achou nisso muita piada e ficou meditabundo, enquanto o segundo correu para casa, ufano, proclamando: “Mãe, na nossa escola, somos só dois os pobres: eu e o Quinzinho”.
      No momento, para aquele garoto, tal situação equivalia a serem considerados os dois melhores da turma.
      Retomo, então agora, o início destas minhas congeminações, porque começo a perceber qualquer coisinha.
     Estamos numa contextura em que se olha para esta nossa sociedade, ou melhor, para cada um de nós, sobrecarregando-nos com o epíteto de esfarrapados, ignorantes, esfomeados, malandrões, órfãos desprezados e na bancarrota, desempregados que vivemos à sombra e sob a égide de quem queira condenar-nos ainda a mais pobreza, mas com a incumbência, por nossa parte, de apregoarmos com sonora e inocente satisfação que somos uns pobres coitados a estender a mão à comiseração fantasiada dos quantos já puseram as patorras sobre a debilitada cerviz da nossa economia de autênticos invertebrados.
    Talvez até esteja certo porque, dada a forma como muitas camadas de famílias se comportam, continuando a gastar ou a deixar que os seus mais novos o façam, como se pertencessem à classe dos governantes, não merecemos outra coisa senão o riso escarninho de quem nos reconhece como os títeres foliões que exibem nas costas o cartaz de “pobretes, mas alegretes.”