A ALEGRIA DE SER POBRE
Nunca entendi, ou não quis entender, a expressão
bem portuguesa e popular, creio, do “pobrete, mas alegrete”. Talvez isso não
produza na minha pessoa grande mossa, em virtude do berço em que me deitaram,
acabara eu de nascer, ser uma caixa onde haviam jazido sardinhas para venda,
embora suas tábuas depois fossem aplainadas e marteladas pelo artífice sem
diploma nem arte, mas credenciado pelo carinho e amor cuidado de pai.
Não
cresci entre sedas e brocados nem fui sentado em mesa onde luzissem os talheres
de prata ou dourados.
Entrei
numa Escola Primária, por caridade e favor, depois de ser “expulso” da primeira,
que frequentei só durante dois dias, porque a sala de aulas estava carregada de
modo a não comportar tão grande número de alunos, abrangidos nas quatro classes
de então.
Não
estou, nem quero, a lamentar-me de alguma coisa. Muito pelo contrário. Dá-me
uma enorme satisfação trazer à memória restos de vida por que passávamos sem
garantias nem subsídios.
Os tempos eram outros e tudo servia para
estabelecer normas de vida e linhas divisórias entre os bafejados da sorte e a
arraia-miúda da sociedade.
Mas
ultrapassávamos, com natural espontaneidade, a situação. Também é certo que a
nossa cabecita não concebia a dimensão dessa desgraça tamanha.
Faço regressar à recordação um episódio de
dois miúdos a frequentarem a mesma sala de aulas, quando nela se fazia o favor
de distribuir pequenos e frugais lanches às crianças que pareciam trazer mais
carências estampadas na cara.
Numa
ocasião e, enquanto lhes foi perguntado algo sobre as suas famílias e
pormenores sociais respectivos, um enumerou a existência de seis irmãos e o
outro relatou não ter pai porque este havia abandonado a casa, mulher e filhos.
A ambos os rapazitos entregaram um lanche porque eles mesmos tinham adquirido
tal direito, reconhecido pelo estatuto de serem pobres.
Todavia
um deles não achou nisso muita piada e ficou meditabundo, enquanto o segundo
correu para casa, ufano, proclamando: “Mãe, na nossa escola, somos só dois os
pobres: eu e o Quinzinho”.
No
momento, para aquele garoto, tal situação equivalia a serem considerados os
dois melhores da turma.
Retomo,
então agora, o início destas minhas congeminações, porque começo a perceber
qualquer coisinha.
Estamos
numa contextura em que se olha para esta nossa sociedade, ou melhor, para cada
um de nós, sobrecarregando-nos com o epíteto de esfarrapados, ignorantes,
esfomeados, malandrões, órfãos desprezados e na bancarrota, desempregados que
vivemos à sombra e sob a égide de quem queira condenar-nos ainda a mais
pobreza, mas com a incumbência, por nossa parte, de apregoarmos com sonora e
inocente satisfação que somos uns pobres coitados a estender a mão à
comiseração fantasiada dos quantos já puseram as patorras sobre a debilitada
cerviz da nossa economia de autênticos invertebrados.
Talvez até
esteja certo porque, dada a forma como muitas camadas de famílias se comportam,
continuando a gastar ou a deixar que os seus mais novos o façam, como se
pertencessem à classe dos governantes, não merecemos outra coisa senão o riso
escarninho de quem nos reconhece como os títeres foliões que exibem nas costas
o cartaz de “pobretes, mas alegretes.”