Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

quinta-feira, 21 de julho de 2011

ORA, VAMOS LÁ, À FEIRA

         Em tempos bíblicos, a praça pública poderia ser sítio de espera para quem procurava trabalho e meios de subsistência.
         Até os da última hora viam a sua pessoa valorizada, digna de ocupação e compensação compatível (cfr.Mt.20,1-16).
         Mesmo conhecendo o texto evangélico e atendendo ao respectivo sentido catequético, lembro aquilo que me confundia, confesso, há uns anos atrás: a efectivação da “Feira dos Moços”.
         Tratava-se de, num aprazado dia, os rapazes marcarem presença em determinado local da cidade de Aveiro, durante longas horas, aguardando que os marnotos viessem contratá-los para a safra do ano nas marinhas do sal.
         Acordava-se, entre os contratantes, um preço de salário adequado para a temporada e tudo se organizava da melhor forma.
         Era até ocasião propícia de arrecadar bom dinheiro e enfrentar as despesas de casamento para os que faziam tenção de o realizar por esses tempos futuros mais próximos.
         Hoje os mercados estão um tanto mais diversificados e, vamos lá, a própria mercadoria a procurar ou a oferecer será também outra, agora.
         Quem deseja alguma coisa vai à feira, lança seus olhos perscrutadores e merca o que leva em mente, se tem dinheiro, porque se este não abunda nas suas algibeiras, dá uns quantos passos atrás e sai, meio envergonhado, pela porta que encontrar mais perto.
         As coisas e os animais estão à vista da cobiça ou da necessidade de cada um. É pegar ou largar, mesmo regateando preços e cláusulas.
         Nestes nossos tempos, porém, parece não haver já o contrato de mão-de-obra mas compram-se e vendem-se pessoas especiais.
         Os meios de comunicação comportam-se, nos dias que correm, como os grandes pregoeiros dum tal “objecto” de venda neste mundo em queda vertiginosa, escandalizado pelos números que se movimentam no negócio da tal manigância transaccionária de homens.
         Talho ao ar livre.
        Falo, como se perceberá com facilidade, das transferências astronómicas elaboradas à volta de indivíduos que, usando a inteligência nos dedos dos pés, são disputados por clubes e dirigentes numa ânsia infame de afirmação do poderio económico sem crise.
         Na verdade, e para sermos decentes, não havemos de perceber a razão por que, neste tempo das vacas magras, as gordas continuam a pavonear-se com ares arrogantes, amesquinhando a fome, a miséria e a guerra que assolam povoações inteiras e também a passearem-se por dentro dos nossos enegrecidos limites.
         Não admira que muitos dos garotos procurem, hoje, o desporto não pelo exercício físico em si, mas na busca de um lugar de craque com bolsos recheados e grandes brinquedos duma abastança podre, passada longe da convivência dos valores humanos que poderiam fazer deles homens na acepção autêntica da palavra.
         Agora, vou dar largas à minha fantasia, imaginando que o dito mercado de homens pudesse acontecer em relação às empresas transformadoras dos variados e necessários bens das populações. Era razoável, formidável mesmo, que os proprietários exercessem a capacidade e facilidade de procurar, na feira pública, os seus melhores trabalhadores para uma luta sem tréguas pelo primeiro lugar. E que, claramente, dispusessem daquelas somas tão elevadas para pagamentos lícitos e justos de tanta mão-de-obra.
         A empresa esmerar-se-ia em tudo e os seus operários procurariam treinar-se com afinco para figurarem sempre na lista dos convocados a entrar em campo.
         Admito que é utopia mas, também como o sonho comanda a vida, por aí não advirá mal algum em desejar que houvesse senso moral para ninguém comprar homens a preço nenhum e se pagasse com justiça a quem trabalha, de tal forma que umas botas-chuteiras não valessem mais que as mãos calejadas do agricultor ou do simples operário que, vivendo curvados ao peso das suas obrigações, sujam as mãos e não conseguem pagar a água com que as hão-de lavar.


                                                                         Manuel Armando  


terça-feira, 19 de julho de 2011

QUANDO OS MELROS CANTAM

           Diante da casa que habito, um melro. Canta que se desunha.
        Todas as manhãs, bem ainda pela madrugada, não se incomoda por acordar-me nem receia que me abespinhe. Sabe prestar o sublime favor de anunciar que ele e eu estamos vivos e conscientes para um acto de gratidão ao Criador pelo dom e harmonia da natureza.
         E, nesses momentos, grandes recordações são atraídas à minha memória pelo que se desenrolava, outrora, na vida do garoto de calções, que fui.
         De penas pretas ou de um castanho-escuro salpicado e de bico amarelo, os melros eram alvo da cobiça do rapazio. Eu e os outros companheiros armávamos ciladas, no intuito de apanharmos algum para o metermos numa gaiola, onde seria ensinado a cantar a nossa inocência. Confesso que não me lembro ter, alguma vez, apanhado um, sequer.
         Mas era fascinante sentir a aldeia acordar ao som do cantar dos diversos melros, nos desafios entre si e com o acompanhamento dos trinados de outras diferentes e numerosas aves que se empertigavam pelos ramos das árvores, onde também faziam os seus ninhos.
         Nostalgia pura, isto? Não. Apenas um situar as nossas pessoas no meio de um universo no qual todos nós ocupamos aquele espaço que deve ser compartilhado e animado por qualquer indivíduo no seu tempo e lugar.
         Conservar a natureza em estado de equilíbrio ecológico e moral é obrigação normal para todos. Fazer este mundo sempre melhor, mais justo, atraente, alegre e feliz, harmónico e respeitador ou respeitado é tarefa que compete ao rico e ao pobre, ao pequeno e ao grande, ao patrão e ao empregado, ao governante ou ao governado. É na conjugação dos pés que se movem e das mãos que se levantam para o alto que há-de encontrar-se o projecto de construção deste globo inacabado e, sempre, em crescimento.
         Bendito melro, porque entoas os teus hinos de tons naturais e lídimos, a entrarem pelo meio da minha janela e acordarem o meu viver, levando-me, nas asas da memória, a evocar tempos idos.
         Quero pedir-te perdão pelas vezes que te persegui na figura dos teus semelhantes antepassados, quando eu era pequenito.
         Agora, permite que te fique sempre agradecido pela tua voz cristalina mais melodiosa, porque verdadeira, que o grasnar, camuflado entre dentes, dos “melros” desta sociedade quando querem não acordar, mas adormecer-nos entre os panos frios da miséria e da desordem.


                                                                                  Manuel Armando