RECORDAR O QUÊ, NO FUTURO?
Se eu afirmasse que não sou saudosista escamotearia a
verdade. De facto, gosto de recordar tempos idos com todas as suas
vicissitudes. Causa-me enorme prazer evocar a meninice nas características e
próprias traquinices, ainda mesmo quando acarretavam consigo correspondentes e
adequadas coacções ou castigos.
Desde o tempo
da Escola Primária até ao curso, dito mais superior, quão salutar é trazer à
memória comum aquelas circunstâncias fáceis ou duras por que passávamos. E,
então, se experimentadas em grupo, redobram-se os motivos do gáudio.
Pessoalmente
avalio, com inestimável apreço, os dois encontros anuais que, eu e os colegas
condiscípulos, exigimos deixar sempre de pé. Também não posso omitir a alegria
de encontrar, noutra data, antigos companheiros dos primeiros anos agora, uns
bem, outros menos, colocados e organizados em vida familiar ou profissional. Às
vezes, parece quase nem nos reconhecermos, dadas as mudanças anatómicas e
branqueadoras que o decorrer do tempo tão rudemente grava na pessoa de cada um.
Recordar será,
na sua plena acepção de pensamento, ressuscitar verdadeira e intensamente os momentos
passados, medindo até noutras perspectivas as consequências de determinados
actos e atitudes que, ao tempo, não imagináramos.
Já tomei parte
activa, nalgumas várias vezes e anos, nos reencontros de antigos estudantes das
diversas áreas e latitudes. Estão a rarear um pouco mais, é certo.
Tenho presidido
às acções de graças de alguns batalhões constituídos por rapazes, hoje homens
calejados na idade que, outrora, operaram nos mesmos palcos de guerra, Quantas
saudades e abundantes lágrimas afloram aos rostos de todos. Eles que
enfrentaram com tenacidade e força os combates e a morte, apresentam-se agora
como aquelas crianças chorosas a quem esconderam o brinquedo apetecido.
Dou conta que
famílias se juntam sob a evocação do apelido comum para saborearem os seus
primórdios domésticos quando, certamente, o aconchego atingia outro significado
e valor alto.
Isto tudo para
expressar uma dúvida que, acutilante e persistentemente, assalta o meu íntimo.
Pergunto a mim mesmo se as crianças, adolescentes e jovens dos nossos dias
terão, mais tarde, alguma razão séria para, depois de terminados os seus
cursos, se isso acontecer, poderem promover reuniões evocativas, celebrando
algo que hajam feito ou descoberto.
Nesta época que
atravessamos, em casa, no café, na Universidade, no comboio ou no avião, os
gaiatos e os crescidos curvam-se mais sobre a maquinaria electrónica do que se
inclinam para a pessoa do lado.
Os computadores
de vários tipos e gamas como todos os outros variados meios do tacto virtual,
vão moldando os espíritos e mentalidades daqueles que crescem para a vida numa
despersonalização tremenda, privados naturalmente da sã convivência que seria
criadora de grandes e sinceras amizades a perdurarem até muito tarde, num
crescendo contínuo.
Não estou a
imaginar, sequer, haver uma apresentação anual de alguém com os seus
entretenimentos já, há muitos anos, esquecidos.
E, porque os
indivíduos deixaram de pensar, por si mesmos, uma vez que as máquinas os
substituem, transmudando inteligências e vontades, assim morrem a camaradagem,
amizade e a vida partilhada. E é pena até porque se começa a não recordar nem
viver e, muito menos, a ressuscitar para o que há de mais sadio.