Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

UMA HISTÓRIA QUE PODERÁ SER VERDADEIRA


ERA UMA VEZ…



Ou…UMA HISTÓRIA QUE PODERÁ SER VERDADEIRA




A família não nadava em muita abastança, mas vivia com relativo desafogo o seu dia a dia pelo trabalho honesto e constante. Não contraía dívidas porque, também, não entrava nos gastos desnecessários ou supérfluos. Amanhava a terra quando os tempos eram devidos e propícios ás boas sementeiras e convenientes resultados.


Não havia fome pois tudo era aproveitado até à última migalha mas sem sovinice. Até os filhos da casa eram guiados no respeito por tudo quanto resultava do esforço e empenhamento dos mais velhos.


Os tempos continuaram a decorrer com normalidade e sem sobressaltos.


Todavia, “não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe”. Os réditos iniciaram a sua quebra. Os produtos para as sementeiras encareceram a olhos vistos. As condições atmosféricas tornaram-se adversas, até catastróficas, e as colheitas já não compensavam os gastos.


Os subsídios prometidos não chegaram nunca e tudo se complicou numa reviravolta irreversível. Os impostos não entraram a tempo e pagaram-se fora de prazo com as consequentes coimas anunciadas.


Começou-se a entender a borrasca que se aproximava e a ginástica exigida para travar as recuas que, em breve, iriam conduzir à derrocada inevitável e ao desespero de toda a família, Esforço ingente, mas quase infrutífero. Contudo, nada de desanimar. Talvez viessem a aparecer outros caminhos para soluções possíveis.


O chefe da família, homem vertical, sensato, inconformado mas delicado, de poucas falas e menos exigências, contentando-se com o que era de sua pertença, convocou o conselho familiar donde saiu a resolução de se

venderem alguns dos bens que não constituíam uma primeira necessidade e, pelo contrário, acarretariam grandes despesas diárias.


Imagine-se, então agora, a dor e o desalento que começou a invadir a mente de quem, depois de alguns anos de tenacidade e trabalho, se viu forçado a tomar resoluções que jamais pensou experimentar. Todo o agregado iria privar-se de muitas coisas, legítimas aliás, para que o equilíbrio orçamental pudesse resguardar-se de uma vergonha, na derrocada social nunca prevista mas, de certeza, aceite com humildade e esperança num futuro mais risonho.


Bem se olhava para trás, mas nada havia a fazer. Alguém, os senhores mandões, as instâncias e as confusões internacionais e as investidas do grande capital tinham já provocado um deslize geral numa sociedade que não se preparara, previamente, em ordem a tamanho embate. E nem é de bom augúrio falar na gama incontável de oportunistas e calculistas que quiseram pôr a salvo as suas economias pessoais ou de empresa.


Apesar de tudo, a tal família conseguiu ainda conservar em sua posse algumas coisas e bens estritamente precisos para os trabalhos diários e em prol da própria sobrevivência. E, dentre esses haveres, ficou o burro que, não significando opulência nem divertimento, sempre ia sendo utilizado em certas lides do campo.


Mas… ora, sobre o asno diga-se que foi o causador inocente de um rude golpe final com consequências a roçarem o drama. Todavia ele, também vítima de uma crise sem precedentes, precisaria de ser alimentado para conservar as forças.


O seu dono e responsável da casa sentiu-se na necessidade de procurar meios para uma solução que tardava a chegar. Saiu em busca sem saber de quê. Calcorreou caminhos e veredas mas pouco descortinou nos seus horizontes. Lançou mão de um fardo de palha que não era propriedade sua; noutra horta colheu uma couve e apanhou umas peças de fruta que pendiam sobre a rua por onde passava. O seu ”instrumento” para as tarefas agrícolas comeria durante uma hora ou mais, a família poderia saborear um caldo verde e ter sobremesa.


Com alguma serenidade interior, decidiu compartilhar com um amigo o que sucedera. Azar para ele. A sua conversa telefónica foi interceptada por serviços secretos desconfiados e denunciada.


E, logo no dia seguinte, teve a desagradável surpresa da visita de uns agentes policiais que o intimaram a uma ida ao tribunal perante um juiz que, de imediato, o julgou, condenou e mandou conduzir para a prisão, durante uns quantos dias.


Foi um período suficiente para o homem e os seus pensarem pesadamente: “Como é plausível que haja uma condenação linear desta natureza por coisa de tão pouca monta, quando outros crimes de falcatruas, cumplicidades e atropelamentos feitos por pessoas conceituadas aos mais desfavorecidos e numa sociedade que se apelida de justa e honesta; levam anos a ser descortinados, nada se quer provar e, ao fim, os seus autores vêem os respectivos processos incriminatórios arquivados sendo considerados inocentes e, até quiçá, indemnizados?”


Na verdade, há mesmo razão para nos sentirmos, todos nós, muito incomodados por este desaforo de incongruências que enxameiam o país que habitamos e do qual, pelo contrário, nos deveríamos sentir orgulhosos.


P. Manuel Armando