Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

segunda-feira, 12 de abril de 2010

ERA UMA VEZ…Ou… O MISTÉRIO DAS TRANSPARÊNCIAS



Tenho sempre alguma ou, até, muita dificuldade em perceber a palavra “transparência” nos seus sentido e conceito plenos.


Como um simples e ignorante estudante que não posso nem devo nunca deixar de ser, recorri ao meu velho Dicionário de Português, companheiro mudo, mas muito sabedor e versado nestas viagens de escritas e redacções, para que não me enganasse no concernente ao significado de tal vocábulo.


E ele respondeu-me: “Transparência, qualidade do que é transparente”.


Se pouco sabia, nada fiquei a saber.


Mas, indaguei o adjectivo “transparente”. Aí li a informação: “que deixa distinguir os objectos através da sua espessura”.


Assim, fui progredindo.


Todavia, uma segunda explicação, então, já me abriu mais os meus horizontes quando traduziu: “Transparente, pedaço de tela, papel, etc, com que se afrouxa a acção da luz; estore…”


E eu a julgar que, através da transparência, se poderia mirar tudo sem peias nem cortinas; quando, afinal, há sempre algo que nos impede de ver claro, empurrando-nos para o translúcido se não para o opaco, directamente.


Demorei muitos anos a descortinar o porquê de ter conhecido um autarca que prometeu, há já longos tempos, fazer construir o edifício da sua Câmara com paredes e compartimentos em vidro transparente e, assim, todos quantos passassem ou dela necessitassem sobre alguma coisa, haveriam de alcançar tudo com verdade e em plena luz.


Desconheço se tal edificação aconteceu, sobretudo com os efeitos referidos, ainda que tenha visitado já essa cidade, em serviço e, vezes sem conta. Valha a verdade que, até hoje, ainda não me informei sobre a sua localização.


Pelo meu lado, também me deixo conquistar por uma nesguinha de santa irritação quando caminho ao lado daqueles mastodontes que se alicerçam e suportam em fortes pilares, realmente com as paredes todas em vidro, sim, mas a servir de espelho para quem está de fora e a deixar que os de dentro possam distrair-se ou alhear-se do trabalho, fazendo muitas pausas para observar, divertidos, as cenas das pessoas que circulam, no exterior, de lado para lado, numa azáfama constante em busca da vida de si tão complicada e movediça.

Ora, continuamos todos a ver quase nada e a sentir muito, sem podermos apontar novos rumos de correcção para o que está errado. A nossa colaboração poderá ser, pois, escusada.


Apesar daquilo tudo quanto é negativo e frustrante, eu gostava de idealizar uma sociedade diferente e totalmente aberta.


Para isso, deixem que alvitre e expresse um pensamento estouvado, mas sincero. Vamos imaginar que todas as habitações da nossa sociedade vão ser destruídas nuns segundos, para se reconstruírem e remodelarem em breves dias, semanas, meses ou anos. Essas novas construções serão, mesmo, elaboradas em vidro, sem quaisquer filtros, nas suas paredes externas e nas interiores. Quero aconselhar, apenas, um compartimento fechado que sirva as actividades mais íntimas de alguém em singular ou para exigências, particularmente, familiares.


O que iremos desvendar, através disso?


Casais desavindos e em discussões contínuas; agressões entre marido e esposa, entre pais e filhos ou vice-versa; comentários desabonatórios sobre tudo e todos; fome e abundância, estrago do supérfluo e aproveitamento das aparas desperdiçadas nos caixotes do lixo; choros de crianças carentes de afectividade e pão e desespero dos mais adultos; pedofilia bárbara e incestos continuados; sujidade, promiscuidade e opulência; raivas, ódios e revoltas; paciência e boas intenções; distribuição de tarefas ou, em contraste, despotismo sobre os mais desfavorecidos por causa da idade ou saúde; idosos postos num canto sem poderem dialogar com os demais; lumes apagados a tresandar a gelo afectivo; mesas vazias porque os filhos já não compartilham as refeições com os pais; e tudo quanto mais nós todos pudermos e quisermos imaginar.


Se, ainda, procurarmos alongar o olhar para sedes de associações ou partidos políticos, agremiações, instituições, mesmo ditas de bem-fazer ou desportivas, igrejas e hospitais, descobriremos cotão aos montes, a solicitar uma varridela e remodelações imediatas.


E se, porventura, passássemos aos hemiciclos da governação e aos seus passos perdidos, quanto toparíamos de crueldade, injúria, injustiça, egoísmo, desprezo pela vida e pelos direitos, esquecimento dos deveres e promessas, muitos discursos distorcidos e enfatizados, todavia, vazios. Tudo afirmado e feito em nome da transparência mas estendendo sempre o tal pedaço de tela que dificulta o bom entendimento.


Falas inflamadas dos grandes e fáceis oradores, parecendo traduzir a clareza de todas as coisas e empreendimentos, mas assentes em autênticas muralhas intransponíveis de cambalachos e negociatas, no mínimo, duvidosas, com largos buracos onde se afundam submarinos e denunciam faces ocultas.


Vamos continuar a fantasiar que tudo se encontra em franca claridade. Mas convenhamos que, nesta sociedade, as paredes aparecem-nos como medonhos muros compactos a evitarem alguma coisa que possa ser observada facilmente.


Portanto, deduzimos e concluímos que isso de transparência é uma balela, porquanto só os telhados são de vidro.