Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

sexta-feira, 27 de julho de 2012




   APARÊNCIAS E OUTRAS CONFUSÕES

     Por vezes a nossa existência experimenta episódios que nos fazem cismar e até mudar concepções ou transformar atitudes concretas, tidas como as melhores numa sociedade de diferenças e elites.
     E acontecem determinados momentos, cujas consequências se radicam no disco rígido do subconsciente de todos, a ponto de nem o vírus mecânico ter a capacidade de fazer esquecer.
    Sucedeu já, e felizmente, por inerência desta minha missão, eu cruzar com muitas pessoas que aparentavam não serem dotadas de grandes qualidades ou capacidades e, depois, ter de rectificar essas opiniões erradas descabidas. Quando tal acontece, não significa, de forma alguma, demérito ou inutilidade, mas que constitui motivo importante para frequentes acertos dos nossos juízos, perigosamente injustos e inoportunos.
    Isso vai-nos moldando numa personalidade adulta apta a encarar os relacionamentos de forma mais humana e respeitadora.
     Se, momentaneamente, desejamos ser reconhecidos ou até adulados, poderemos ter de aceitar uma saída de sendeiros pela porta mais estreita.
     À laia de exemplo não me dispenso de evocar um facto, deveras caricato, a que me levou a minha juventude entusiasmada mas inexperiente, nos inícios da missão.
     O caso conta-se em duas penadas.
     Desloquei-me à cidade para tratar qualquer assunto. De regresso a casa, no meu carrito de que eu era já o sétimo proprietário, vi, na berma da estrada, um miúdo com os seus doze, treze anitos não mais, munido de marmita, esperando a caridade da boleia de quem passasse. Era o fim de um dia penoso de sacrifício pesado. Como calhou a minha vez, parei e convidei-o a entrar. Sempre seria melhor que uma caminhada, depois de um dia de trabalho, e naquela idade. Puxei conversa para um diálogo breve pois a distância não dava para muito. Contudo, ainda proporcionou este naco de boa disposição que tento reproduzir, agora.
      “Como te chamas e que idade tens?”
     Lá me foi respondendo, enquanto deixava transparecer o seu cansaço e desilusão precoces por uma vida começada em tais circunstâncias de exigência e dureza.
    “Que fazes, com quem vives, onde moras?”
      Fui começando a privar com as intempéries duma sociedade infantil.
     “Conheces-me?”, indaguei eu.
    “Não, senhor”, respondeu ele.
     “Mas, então, tu não vais à Missa”? insisti.
     “Vou, sim senhor”.
    “E, então, não me conheces, não me tens visto lá na Igreja?”
     Nesse momento, fixou em mim os seus olhos gaiatos e desatou:
    “Ah, já o conheço, já sei quem você é”.
    Subi no meu brio e, para desfazer quaisquer dúvidas, atirei:
    “Quem sou eu, afinal?”
    “É o sacristão”.
    Disse isto com a maior e mais seráfica alegria, como se tivesse descoberto, naquele instante, a fórmula química para a invenção da batata.
     Nada me opõe aos sacristães; pelo contrário, avalio o alto valimento dos seus serviços.
    Também não me desiludi nem caí das nuvens. Fui, bem pelo contrário, ajudado a perceber tanta injustiça como, nalgumas vezes, quando pretendemos julgar alguém pelas aparências ou se, nós próprios, desejamos ser reconhecidos naquilo onde não possuímos valor.
    As aparências externas transportam-nos a algumas clamorosas confusões, porque a fisionomia, nem sempre, é boa janela.