Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

VEIO PARA O QUE ERA SEU

          Encherá sempre a memória
              E, mais ainda, nosso frágil coração
              Aquela grave e sublime história
              Que, não sendo banal e doce fantasia,
              Duma novidade vazia,
              Trouxe ao mundo a harmonia,
              Satisfez a esperança da razão
              De aguardar o dia
              Quando, para todos, viria
              A plenitude da Salvação.

              Era uma vez um Menino lindo
              Que, no Seu amor infindo,
              Desejava nascer 
              Para experimentar sofrer
              A vida dos humanos,
              Admitindo, já nos eternos planos,
              Por eles morrer.

              Bateu, com suavidade em cada porta,
              Provocando muita curiosidade.
              Descobriu que, na humanidade,
              O sentido da caridade
              Era letra morta,
              Inscrita em corações rasos de crueldade.

              Galgou os átrios de político falante
              A quem perguntou, com voz sossegada:
              - “Posso encontrar em ti minha pousada?
              Preciso nascer neste instante
              E dar aos homens a certeza
              De que, mesmo na pobreza,
              Encontrarão liberdade,
              Pois só em fraternidade,
              Ou repartindo seu pão com amor,
              Encontrarão o Senhor”.
              Logo ouviu como reposta:
              - Não é disso que a gente gosta;
              Sabes falar às turbas da sociedade
              Dizendo a mentira com roupagem de verdade?
              De contrário, podes continuar teu caminho
              Pois, aqui e assim, não farás teu ninho”.

              Abeirou-se do militar e, com desvelo,
              Elogiou-lhe o prestimoso zelo
              E, sem passar da entrada,
              Ouviu, quase de rajada,
              Num grito de espantar:
              - “Trazes armas para matar?
              Se não, podes perceber
              Que, nesta guerra, não vais tu nascer”.

              Chegou à câmara do intelectual
              Que o olhou de soslaio
              E avisou: “Inquietas-me, mas para teu mal,
              Nessa não caio.
              Não me vais agora incomodar
              Porque não sabes pensar.
              Procura outra guarida;
              Comigo não ganharás nenhuma vida
              E esta é uma tua hora perdida”.

              Foi, então, até ao empresário
              Que, sem nada querer ouvir,
              Desfiou o enorme rosário
              De suas lides em cada dia
              E berrou, com insolente energia:
              - “Tens dinheiro para investir”?

              Como sua bolsa estava vazia
              Pois, apenas, nela trazia
              Uma grande e forte esperança,
              Correu, ágil, ao homem da finança
              Que, rudemente, lhe fechou as portas.
              Naquelas horas mortas,
              Encontrou um lunático cientista,
              De ar orgulhoso e futurista,
              A perguntar-lhe, com sarcasmo profundo:
              - “Sabes fazer experiências
              Ou conheces as ciências
              Da origem do Homem e do mundo”?

              Lívido, mudo e quedo Aquele Menino,
              Perante tanta arrogância e frieza,
              De olhar inerte e tristonho,
              Contemplou a Sua Natureza
              E, ouvindo o tumulto medonho
              Dos homens soberbos e orgulhosos,
              Reparou quanto eram penosos
              Os trabalhos do cavador
              Que, em braçadas de dor,
              Buscava, com afã, o seu pão.
              Resolveu dar-lhe a mão.
              -“Vem, disse-lhe, então, o pobre, afogueado;
              Vem e partilho contigo a courela
              Deste campo que amanho;
              Lavas-me do meu pecado,
              Na tua espiritual barrela,
              E ficamos os dois de ganho”.

              Eis, se não quando, chega um sem-abrigo
              E o convida com a emoção que a ninguém engana:
              - “Entra e, porque és meu amigo,
              Nascerás na minha cabana”.

              Também nisto as crianças não são indiferentes,
              Estão em todas as frentes.
              Por isso, com semblante gaiato e feliz,
              Corre àquele encontro, um petiz
              E, na maior naturalidade,
              Descobrindo toda a verdade,
              Diz:
              - “Eu não sei ler
              Nem, tão-pouco, escrever
              Mas contigo quero aprender.
              Aguentas, nas costas, a sacola?
              Portas-te bem na Escola?
              Vais comigo brincar, correr,
              Jogar à bola”?

              E o Jesus, sem Se dar a conhecer,
              Começou por dizer:
              - “Eu, ainda, não sou nascido
              Mas, tendo-te conhecido,
              Em ti vou nascer.
              Faremos boa companhia;
              Minha Mãe chama-se Maria.
              E, como também és pequenino,
              Tudo faremos em parceria;
              Seremos bons para os demais
              Como nos ensinam nossos pais”.

              O Deus-Menino, que quase perdia a esperança,
              Fez amizade com aquela criança;
              Apontou-lhe caminhos de liberdade
              Na busca da felicidade,
              E ela mesma haveria de entender a lei do amor
              Para tornar o mundo, caído e sofredor,
              Num oásis de vida melhor.

              Na verdade, Ele veio para os seus
              E estes não O receberam;
              Recusaram a felicidade dos Céus
              Porque, jamais, entenderam
              Os desígnios de Deus.

              Mas quem abriu, de par em par, sua morada
              E O acolheu com humildade de coração,
              Há-de tomar parte na mesa recheada,
              Do banquete da Salvação.


                               (Festa de Natal, Ano B – Jo.1,1-18)
  

O MEU SONHO DE NATAL

    Quem nunca imaginou coisas, umas simples, outras mirabolantes como, por exemplo, ter autoridade fora do comum ou estar em qualquer missão de destaque e capaz de virar o mundo de cangalhas? É que, por enquanto, ainda vamos usufruindo o direito de sermos livres para pensar em tudo, quando estamos bem acordados.
    E, se o mesmo acontece durante o sono, é bom experimentar acordar com os laivos da esperança de tudo, num futuro próximo, vir a desenrolar-se tão bem como o vivido no filme do nosso subconsciente, em rédea solta e despreocupado. Quando assim é, um sabor a mel inebria, por vezes, as nossas papilas gustativas que desenvolvem uma torrente de água doce na nossa boca já de si azeda.
    O amargo total chega depois ao verificarmos, na desilusão, que tudo não passou de uma brincadeira onírica inconsciente sem saída plausível.
    Sonhos são, na verdade, sonhos ou realidades irreais. Mas comandam a vida, incontestavelmente.
    Pois eu sonhei e um sorriso irreverente assomou, logo, aos meus lábios porque se me anunciava o alvorecer de novo dia.
    Só eu o saboreei. Todavia, não quero admitir que o caso fique embrulhado, como prenda unicamente minha e, por isso, vou desfazer o lacinho e abri-lo para também muitas outras pessoas sorrirem escancaradamente e sem vergonha.
    Sonhei que decorria nas ruas da cidade uma enorme manifestação social, política ou religiosa, não descortinei bem. O povo simples, o verdadeiramente trabalhador e funcionário público dos campos ou das oficinas, por direito próprio e democraticamente elegido, ocupava os “passos encontrados” das salas do poder constituído. Vergados ao peso dos anos de fome, cansaços e privações, cheirando a bafio e suor, os homens e mulheres continuavam os seus dias, num misto de certezas e desencantos, trabalhando para o bem comum, sem manifestar qualquer prova de enfado.
   Lá fora, milhares de altos funcionários com patentes de Estado ou a ele ligados, em longas e intermináveis filas, eram os manifestantes dessa altura e a eles se juntavam faces ocultas e muitos, muitos senhores de comendas e mordomados sem conhecimento prévio e pessoal, banqueiros e presidentes de administração disto e daquilo a gritarem a sua vergonha por gozarem os gordíssimos ordenados, reformas e outras tantas benesses (passeadas em duplicado, triplicado ou mais…).
    Estes, levantando bem alto os cartazes uniformemente elaborados, afirmavam, com inaudita humildade e altruísmo, que, se o povo (aquele povo honesto e probo que estava no poder) lhes permitisse, iriam prescindir de todas as regalias que lhes eram impostas e justificadas por leis previamente elaboradas para seu proveito, em ordem a resolver e vencer a onerosa crise onde metade do país está sepultada.
    Achei que significava uma medida salvadora capaz e oportuna. Também eu me debruçava na janela do complexo governativo e, não só aceitei, como ainda incentivei todo o povo anónimo, pretenso governante, a acolher e abraçar o protesto dos endinheirados.
    Contudo…, agora, eu acordo para a realidade.
    Isto não passou de mera e mesquinha fantasia.
    Sonhei ser uma prendinha a cair pela chaminé nas tairocas de quantos pelejam e caminham em busca de uma vida mais feliz e justa. Ficção pura porque, enquanto enxamearem os abutres gananciosos, isso não deve acontecer.
    Mas, ainda assim, atrevo-me a formular para todos o desejo de um bom Natal, porque o novo ano se avizinha carregado de sombras.



                                                                                     Manuel Armando
     
     
  

sábado, 12 de novembro de 2011

OS SINAIS QUE NOS IDENTIFICAM

         Não sei bem porquê mas é certo que, sempre, me encrespei com determinadas maneiras como são promovidos alguns produtos, vendas, cargos, desportos, eventos culturais e recreativos e mais uma infinidade de coisas, incluindo pessoas nas suas actuações ou capacidades particulares artísticas ou de simples divertimento.
         Em todos os cantos e esquinas, nas paredes e muros, Jornais e Revistas, nos panfletos que entram por baixo da nossa porta e nos instrumentos de escrever, adornando recintos desportivos e dentro das inúmeras repartições públicas, estendendo-se até onde os nossos olhos possam enxergar algo, lá está, bem saliente, tudo quanto alguém deseja ver descoberto e depois comprado, senão, seguido.
         Também os supermercados e empresas utilizam invólucros plásticos ou de papel onde se exibem a gravação dos nomes, as propriedades da matéria vendida, a casa de origem.
         Pessoalmente, recuso-me comprar qualquer peça de vestuário onde estejam impressas inscrições ou sinais de marca com patente que vão tornar o preço muito mais elevado pois, assim, se subentende pagar o material, a obra e o nome. Não sustento, por isso, intenção de me assemelhar ao autocarro com publicidade na chaparia. E, convenhamos, ninguém me iria pagar para servir, deste modo, tal negócio.
         Bem sei que alguma juventude (e não só) alinha, entusiasmada, no transporte de roupa sinalizada com os mais diversos motivos estampados. Também isso não lhes carregará muito nem fará arquear as costas.
         Mas não posso nem devo esquecer aquelas frases vivas e atraentes, gravadas nas T-shirts (sobremaneira as usadas por meninas), que são provocatórias ou atentatórias à própria dignidade de quem as veste e que, por vezes, constituem autênticos dislates.
         Estou em crer, todavia, que tudo isso significa apenas ostentar-se um qualquer emblema clubista desportivo ou político. E nada a opor, pois cada pessoa é livre de levar aos ombros aquilo em que acredita e pretende.
         Ora, agora, reflicto: - Mesmo, nós todos trazemos uma chancela indelével mas, nem sempre, a pomos em destaque. Ela não se mostra a si mesma; somente se descobrirá mediante obras visíveis.
         Na verdade, se houvesse empenho e ardor para exteriorizarmos a marca por que somos assinalados, faríamos uma festa de cor e luz.
         É que trazemos, não às costas, mas no coração e na alma, o selo da imagem e semelhança de Deus que nos faz emergir sobre toda a criação.
         O Espírito gravou em nós, pelo Baptismo, o sinal da fé para a vida eterna (Ef.1,13-14 ou 2Cor.1,21-22).
         Conscientes desta prerrogativa, e sem vergonha, haveremos de inventar formas para envergar uma roupagem que identifique quem somos, os nossos entusiasmos ou filiações enobrecedoras, porquanto as possamos, ainda, engalanar com legendas da Palavra de Deus.


                                                                             


                                                                           

                                                                              

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

QUEM SALVA A FAMÍLIA?

         Dada a complexidade da sociedade dos dias em que nos movemos, sujeitos a todas as vicissitudes de mudança ou acomodação transigente no desmoronar de valores essenciais, em boa hora surgem intenções e acções com o sentido da preservação e respeito desses mesmos valores.
         Na continuidade e fidelidade à missão, todas as agremiações de pessoas, tremendo sob ameaças de ruína, levantam a voz e dão as mãos numa luta sem tréguas em favor da consciencialização acerca do que é a vida, o Homem, os grupos, o trabalho ou, numa palavra, a dignidade nos sectores globais da existência.
         Não é de ânimo leve e sem medir consequências que a problemática da Família aparece na quarta etapa do Plano Pastoral da Diocese de Aveiro, no intuito de ajudar cada cristão, individualmente ou em conjunto, a tomar consciência do que ele mesmo é, colaborando na renovação e dinamização das estruturas com vista à sua solidez pela intervenção da fé na vida real, como “âncora e farol de esperança”.
         Nada fácil o desinstalar consciências quando elas buscam mais o ter que o ser. As incidências estruturais e sociológicas estão a conduzir, sobretudo os mais novos, a uma leveza ou leviandade de actuação no entendimento sobre aquilo que é básico e o fundamento da respeitabilidade do ser Homem.
         Quem contacta os sítios de encontro dos jovens pasma com tanta insensibilidade sobre variados problemas cruciais, relativos à construção sadia da cidade humana.
         Torna-se evidente que, se a comunidade e seus responsáveis não conduzem as coisas pelos trilhos da verdade e da vida, os mais novos ver-se-ão privados dos alicerces convenientes e seguros.
         Por crescerem quase sem referências, patenteiam uma grande superficialidade em relação a assuntos de suma importância para o seu crescimento harmónico e consciencializado.
         Eles pensam afirmar o seu estado adulto se entrarem na onda do que é propalado e defendido por quantos invertem os direitos e os deveres.
         Assim, como exemplo, acham que todas as medidas preconizadas contra a vida são a expressão de uma liberdade individual que nada tem a haver com os outros ou qualquer entidade superior e sobrenatural.
        Contestam a autoridade familiar, centrada nos pais; aceitam-se sem engulhos no parasitismo porque se encontram, então, fora dos quadros de trabalho. Não auferindo portanto salários, procuram usufruir todas as regalias e não acatam quaisquer escusas provindas dos seus maiores. Deixam-se entusiasmar pelas doutrinações de facilitismo, emanadas dos poderes constituídos que contrariam os altos valores da vida e da família: o aborto, a eutanásia, os divórcios, as uniões passageiras e irresponsáveis, as desordens na educação estudantil, as rebeliões laborais, a injustiça social e tantos “focos cancerígenos” que a sociedade ostenta.
         Concorde-se ou não, mas reconheçamos honestamente que a Igreja, com as suas estruturas sociais para as diversas etapas da idade e com as acções de formação, a atenção dedicada às crianças e aos jovens, procura afincadamente ser “Fraternidade de Famílias confirmando a Esperança”.
         É sempre um desafio permanente mas ela, a Igreja, continuará a sua nobre missão de comunicar Deus e contribuir para o alicerçar da sociedade, salvando a sua base: - a Família. E, também, que ninguém se considere excluído desta mesma obrigação.
                                                                                                   
                                                                                                     

terça-feira, 18 de outubro de 2011

VAMOS LÁ, À ASSADURA…

         Quem poderia resistir, não a um pedido mas ao convite?
         Entendamo-nos. O primeiro termo carrega em si uma dose de subserviência, um servilismo camuflado, enquanto o segundo, convite, traz consigo o sentido de aproximação, convivência com pessoas, coisas e modos de ser, anseios e projectos.
         Por isto, repito, como deveria recusar o convite de enfiar mais alguma lenha na fogueira de onde pode sair, bem assado e fumegante, aquele bichinho que é o deleite de tanta gente que o degusta com elevado prazer, quase até só, pelo aroma que exala e o gosto que despoleta.
         Não sei fazer cozinhado, rigorosamente, nenhum. Todavia, vou apreciando o que outros confeccionam. Nessa razão, a minha forma pessoal de falar do assunto de assaduras e quejandos pode não ser a mais correcta, mas expressará o desejo de me esclarecer como simples leigo que sou, em tal matéria.
         O tema, aqui versado, faz-me recuar uns bons pares de anos atrás, à simplicidade da aldeia, aquando se ”esfogueiravam” as panelas, numa lareira, ou se introduziam as travessas e caçarolas de barro, pretas que nem chamiços, num forno para, daí saírem iguarias de sabor delicioso a fazer inveja e criar apetite aos próprios anjos.
         Eu, que não sou um amante de “pizzas” (parecem-me pedaços de plástico, acabado de sair dos altos fornos, maleável enquanto aquecido, mas logo endurecido e intragável), lembro-me de ter entrado na pequena cozinha duma aldeia etrusca, em Itália, e saboreado uma dessas coisas que, composta à vista de toda a gente, entrava na fornalha com brasas incandescentes e de lá saía como uma verdadeira delícia. Também comi.
         Os meios eléctricos modernos, digo eu, retirarão uma percentagem razoável das propriedades no assar do leitão e podem, até, atiçar chispa mortífera entre concorrentes.
         Será mais rápida e rentável tal forma de feitura?
         Prefiro meter achas para brasas e não ser ofuscado por raios nem reconhecer que há choques radioactivos que matam muitas causas boas.
         E, por agora, meia palavra basta.

                                                                            
                                                                           Manuel Armando

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

COMO FAZER, SE AS ESCOLAS FECHAM PORTAS?

         Tenho de voltar aos bancos da Escola Primária. Bem sei que, agora, não se chama assim. Todavia, pessoalmente, acho esta nomenclatura ter mais consistência, conteúdo e história.
         Não me agrada, mesmo nada, ler os livros actuais escritos na crista da onda do novo acordo ortográfico. E, por sinal, até estou com um desses entre mãos, aliás de assunto bastante interessante, mas que me causa um embaraço, para não dizer náusea, e vontade de sublinhar, a vermelho bem carregado, todos os vocábulos que não se parecem com quanto aprendi, em pequeno. Assim, alguns senhores levariam as palmatoadas semelhantes àquelas com que fui mimoseado, durante o tempo do romper os fundilhos, nas toscas cadeiras da velha sala de aulas.
         Ou, então, vejo-me forçado a pensar mal da senhora Professora, cuja memória religiosamente lembro, que me amparou ao longo dos quatro anos primários, porque não me terá ensinado como e o que deveria na arte da escrita. Mas, tal coisa não é viável nem admissível de pensar, sequer.
         Outra conclusão a invadir-me a memória, é aceitar que os alunos, em tempos, “passados pelas minhas mãos”, tinham completa razão quando apresentavam exercícios onde a forma de escrever correspondia ao “cada cavadela, cada minhoca”, tantos eram os erros de ortografia que, orgulhosamente, ostentavam.
         Posso, ainda e sem receio de engano, deduzir que tal acordo apareceu para tapar, como peneira bem rala, o pouco conhecimento de quem escrevia mal, mas que passou a fazê-lo bem em virtude das regras fabricadas para as explicações adequadas a determinada burrice.
         Também é certo ver tais metamorfoses obrigarem outras boas almas a um ingente esforço para fazerem verdadeiras reciclagens dos métodos de ensino, situação causadora de revoluções intelectuais animicamente depressivas.
         Por mim, confesso, proponho-me continuar a escrever absolutamente como aprendi, uma vez que, tendo batido já às portas de várias Escolas, nenhuma delas me aceitou, informando-me os seus responsáveis sobre a impossibilidade de o poderem fazer porque, como me responderam (na galhofa, claro), “burro velho não aprende línguas”.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A NECESSIDADE DO FERMENTO

         Temos uma determinada propensão, talvez inata, para o estado pessimista permanente de nos lamentarmos com intensidade, por tudo e por nada. Parece estar na massa do nosso sangue deixarmo-nos arrastar, logo, desde os primeiros indícios de quaisquer crises, perigos ou barulhos que grassam ao redor de nós, em cada dia.
         Há uma certa psicose de multidão que impede o indivíduo de pesar, mais pela consciência, os boatos ou as notícias reais que obscurecem os intelectos se não forem devidamente acautelados pela auto-defesa do equilíbrio emocional.
         Claro que, para o caso, concorrem muitas circunstâncias fortuitas ou mesmo provindas de quem, sadicamente, alimenta em si a esperança de inconfessáveis proventos abundantes.
         Hoje torna-se extremamente fácil aproveitar a tal psicologia de multidão e fazer correr qualquer problema ou informação que interesse a alguém propalar, sabe-se lá com que intenção escondida.
         Todavia é bom que não nos deixemos precipitar na acomodação ao ambiente para avaliarmos, por nossas próprias capacidades de análise, o mundo humano que nos rodeia. Acharemos, certamente, inúmeros sinais a desvendarem outros prismas por que a vida deva ser compreendida e abraçada. São os exemplos daqueles que procuram entendê-la pelo lado positivo duma execução adequada e produtora dos frutos alimentadores de qualquer existência experimentada em pleno.
         Ora, ainda vamos tropeçando em alguns modos simples e ricos de aceitar contrariedades ou lidar na humildade dos êxitos. Felizmente, dizemos, porque nem tudo está mau, nesta terra dos mortais.
         Aquela senhora, cuja figura tenho diante dos meus olhos, poderá ser considerada um protótipo de elevação anímica espiritual exemplar. Acamada há já vários anos, continua vivendo com lucidez no coração, um sorriso permanente nos lábios, donde brotam também palavras encorajantes e de conformação à vontade divina superior, aceite porque descoberta por fé inabalável.
         Afirma com tranquilidade e convicção: “Aos noventa e muitos anos que transporto sobre os meus ombros, que mais posso aspirar, depois de ter assistido ao partir dos meus pais, olhar os seis irmãos que me anteciparam na abalada, conviver com a felicidade de casada durante sessenta e seis anos, com o homem que sempre amei profundamente, correspondendo reciprocamente ao seu desvelo por mim, e que a sua morte interrompeu na sua forma humana.
         Não nadando na opulência, descobri as delícias do mundo; sempre confiei no Criador que me bafejou com filhos maravilhosos que, até agora, não me deixaram abandonada, nunca.
         Que devo eu desejar ainda, pois, senão deixar o testemunho da minha paz e de um cumprimento da missão que Deus quis confiar-me?”
         Ouvindo tal declaração espontânea e carregada de mensagem, trouxe à memória as palavras de Paulo de Tarso, dirigidas no grande entusiasmo e convicção profunda, ao seu amigo íntimo, Timóteo: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que me entregará, naquele dia, o Senhor, justo juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela Sua vinda” (2Tim.4,6-8).
         É claro que, numa sociedade materializada, como esta que nos quer envolver a todos, tal perspectiva de vida não passará, na apreciação dos cépticos, de pura quimera ou desarranjo de mentalidade. Mas, convenhamos que também sempre, e felizmente, continuará a existir alguém com a noção plena, e conscientemente convicta, da necessidade de ser o verdadeiro fermento para levedar e incentivar a massa restante.

                                                                               Manuel Armando
     

      

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

RECOMPENSA FINAL

                   Abre-se o cenário da Verdade.
                   Soam as trombetas estridentes
                   Convocando todas as gentes
                   Para o universal julgamento;
                   E toda a humanidade,
                   Sem subterfúgio nem fingimento,
                   Verá, num fugaz momento,
                   Tudo quanto fez
                   No mundo que viveu,
                   E se mereceu
                   Entrar, por sua vez,
                   No imortal Reino do Céu.

                   É franqueado o Livro da Vida,
                   Que não permite emendas ou ajustamentos,
                   Onde cada acção cometida
                   De ajuda ao mais pequeno irmão,
                   Operada na humildade da doação,
                   Traz consigo seus valimentos.

                   O pão distribuído ao esfomeado,
                   Ou um simples copo de fresca água
                   Que aliviou a sede e a mágoa
                   Do caminhante ou exilado;
                   A roupa que cobriu a nudez
                   Duma vida em pecado
                   De soberba e altivez;
                   O solícito reclinar
                   Do empenhado olhar
                   Sobre o semelhante doente,
                   Ou a descoberta do prisioneiro,
                   Apegado à ganância do dinheiro,
                   Tudo isso, feito com coração e mente
                   Na Pessoa do Senhor Jesus,
                   Tornará mais leve a sentença,
                   E conduzirá, como recompensa,
                   À celeste Pátria da Luz.

                   Mas, quem isto esquecer
                   Ou não quiser
                   Fazer o bem, por insensatez,
                   Perderá sua vez
                   De se salvar eternamente;
                   Terá morada permanente
                   No afastamento e na dor
                   Pois se fez dono e senhor
                   Da existência que não era sua.
                   E, entretanto, separado,
                   Pela contumácia no pecado,
                   Ouviu a censura mais severa e crua
                   Com o fogo ao Diabo destinado.

                   Queremos nós, então, Senhor,
                   Ficar à Tua direita,
                   Caminhando pela porta estreita
                   Da simplicidade
                   E caridade,
                   Procurando em todo o irmão,
                   Um caminho para a Salvação,
                   Dom supremo do Teu Amor.

                                 (Reflexão para o 34º Domingo Comum, Ano A)
                                                (Mt.25,31-46)