Quem sou

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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

domingo, 20 de fevereiro de 2011

EXPERIMENTAR PARA JULGAR



          Entendemos que, para nos aquilatarmos de certezas e darmos importância a determinadas coisas e circunstâncias, deveríamos, de certo modo, experimentá-las ao vivo ou em nós mesmos.
          Aquilo sobre que ouvimos falar, nem sempre corresponderá à inteira verdade, até porque, como diz a filosofia popular, “quem conta um conto aumenta-lhe um ponto”.
          Recordo-me que, enquanto miúdo, eu dizia não gostar disto ou daquilo e, portanto, não comeria, ao que os meus progenitores contrapunham com a ordem intransigente de experimentação das iguarias. Só, após essa degustação, ser-me-iam levantadas quaisquer reticências que permitiam a liberdade da recusa.
          No crescimento da nossa pessoa humana com uma consciencialização adulta do que somos, pensamos e fazemos, vamos progressivamente adquirindo o entendimento da vida e seus problemas correspondentes.
          A actuação, nossa e dos outros, forma-nos uma personalidade, acrescentando, em concreta caminhada, o conhecimento da socialização e autenticidade deste povo global, onde cada qual tem a atinente quota-parte responsável na sua construção equilibrada e justa.
          É certo que, não sendo eclécticos em todas as ciências e técnicas, e nem com a presunção disso mesmo, ficaremos muito aquém, em consciência e dever, da resolução dos misteriosos contratempos, nesta sociedade humana.
          Jamais descobriremos a capacidade para lutar contra a fome se o nosso estômago esteve sempre mais ou menos saciado. Não imaginamos, de certeza, o que significa viver-se sem uma habitação ou desnudados se o frio foi passando ao lado das nossas lareiras ou aquecimentos eléctricos.
         Porque, felizmente, temos ainda o aconchego da família e a abertura dos nossos vizinhos, também não aceitamos os desacatos, violências e vícios adquiridos dos indivíduos que se vão organizando em grupos pouco recomendáveis e, quiçá, perigosos e aterradores.
          Avaliar e julgar, ou ainda lastimar com leveza de espírito, tornar-se-á o mais linear e fácil mas não fará grande razão. Achamos que as associações ou instituições oficiais deverão ser os donos dos esquemas para obviar todas as dificuldades criadas pela sociedade global ou, particularmente, fundamentadas na inactividade de cada um de nós.
          Há pouco tempo atrás, experimentei o desencanto, para não dizer a náusea, de uma situação caricata em que me encontrei envolvido sem culpa nem vontade.
          Aproveitei, numa das minhas deslocações artísticas, a desvantagem da idade para o benefício da redução no preço do transporte.
          Momentos atribulados, acredite-se. O regresso não coincidiu com horários adequados e rápidos. Ainda achei uma sala de espera, não muito cómoda, mas tolerável, onde me enfiei. Estava só e, às duas horas da manhã em ponto, alguém, com sua autoridade fardada, me veio dar “ordem de despejo”. A minha pergunta perplexa sobre a razão para tal procedimento não valeu nenhuma resposta.
          Daí, o ter passado a noite inteira no desconforto de uma estação ferroviária, à chuva e ao vento frio que gelou o casaco e os ossos.
          Procurei, então, qualquer outro sítio que fosse minimamente conveniente. Desci até ao rés-do-chão. Lá encontrei uma pequena multidão com mulheres e homens, uns deitados, outros sentados ou deambulando para a frente e para trás. Peguei no livro das palavras cruzadas, disposto a misturar-me com aqueles que supus esperarem, também eles, o comboio das sete da manhã.
          Equivoquei-me e, dando por isso, bem depressa percebi o motivo para a “ordem de expulsão” da tal sala de espera. É que todas aquelas pessoas eram os chamados e reais “sem-abrigo”.
         Alguém da Segurança, numa amena cavaqueira, explicou-me parte de todo aquele angustiante drama que se deparava diante dos meus olhos.
          “Auscultei” alguns problemas. Pensei nesta sociedade que somos a vegetar na insensibilidade, na incapacidade de resolução, na praga de parasitismo que se vislumbra, em alguma caridade(zinha) feita, e noutros variadíssimos assuntos e dificuldades.
          Na conclusão de tudo isto, ficou-me um amargo no estômago.
          É que a mim, com aquela certeza segura que eu tenho de ser uma pessoa normal no modo de viver comum, também me puseram fora de uma sala de espera.
         A sociedade fez de mim um “sem-abrigo”.
          Para quê tentar construir ilações sobre tudo quanto se observa mas queremos esquecer, de imediato?
          Todavia, confesso ter-me doído a alma com esta boa experiência, numa terrível noite de inverno a regelar comportamentos e consciências.

                                                                                Manuel Armando

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