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Vocação: Padre - Outras ocupações: artista de ilusionismo e hipnotismo

quarta-feira, 21 de março de 2012

A VACA DA ALDEIA


   Aldeia global. Pelo menos, comportava-se assim, independentemente de quaisquer cartas forais, ou acordos exarados em actas e papéis com oficialização em alguma Repartição Pública estatal.
    De nada disso precisava pois o espírito de boa vizinhança bastava para que tudo decorresse na maior normalidade.
    Nesse espírito solidário, nas horas de dificuldades prementes, logo alguém batia à porta do necessitado perguntando o que se tornava preciso fazer para minimizar possíveis faltas e prejuízos.
    Em postos de trabalho existentes nas redondezas, cada chefe de família granjeava o sustento da sua casa sem invejar ninguém nem ser olhado de soslaio pelos patrícios dos arredores. Acamaradavam nos diversos acontecimentos felizes, como também vestiam lágrimas de autêntica comoção pelos danos materiais ou morais dos seus semelhantes.
    A paz e a concordância eram as armas que venciam as amarguras imediatas de cada um. Os trabalhos agrícolas da subsistência familiar faziam-se com a força dos braços de todos. A semeadura da batata, do milho, trigo, feijão e, mais tarde, as respectivas colheitas ou as ceifas, constituíam momentos de verdadeira alegria, convivência e festa. Até as zangas esporádicas eram resolvidas pelo conselho dos mais velhos e experimentados.
    O êxito de um contentava a todos, enquanto o luto de alguma família vestia de preto os restantes aldeãos.
    Mas, afinal, com tudo isto, quase me ia esquecendo que havia uma vaca de pertença comum.
    Em cada manhã, e revezando-se, as mulheres se apressavam a mungir o animal, levando para sua casa a porção de leite suficiente ao sustento dos familiares, mormente os mais pequenos. Até já a vaquinha demonstrava sentir enorme orgulho e ostentava rasgado sorriso por poder colaborar no bem-estar dos moradores.
    Mas, o senão aconteceu, num dia. Porque o animal era assim tão rendável, sem quaisquer reservas, foi nacionalizado. Nem mais.
    Contudo, as mãos que começaram a tratá-lo eram, agora, mais ásperas e nada meigas.
    Bem depressa a sua fisionomia de bicho generoso, passou a uma carranca de poucos amigos.
Ainda durou alguns meses, ou até, pelo menos meia dúzia de anos. Espremidos com tal grosseria e intensidade, os seus tetos começaram a largar sangue e não o leite de brancura, indispensável à concórdia entre quem dele tanto precisava.
    Tiveram, os seus segundos donos, de voltar à reprivatização. Todavia, nestas circunstâncias, nenhum dos antigos trabalhadores quis pôr-lhe a mão. A secura começou a notar-se a olho nu. Ainda alguém, desconhecedor da matéria, tentou, mas em vão, recuperar o que se tornara inviável.
    A vaca perdeu, progressiva e inexoravelmente, a força e a idade. Num dia, tristemente cinzento, morreu.
    Então, fechou-se para sempre o curral.
    Não recordo se a sepultaram condignamente, mas que a mama acabou, acabou. Agora, só o sangue.           

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